Mulheres Reinadeiras
KELMA (Kelma Gisele da Cruz Conceição), Rainha da Alvorada e capitã-regente, e KELLY (Kelly Simone da Cruz Conceição Santos), Rainha Conga e presidenta, da Guarda de São Jorge do Reino de Nossa Senhora do Rosário (ano de fundação: 1938)
por Joyce Athiê
Quando o Capitão Alcides bateu caixa pela primeira vez num terreno no bairro Concórdia, ele e todos que estavam na sua companhia foram presos, uma prática que se revelava como um sintoma da presença estrutural do racismo religioso. Apesar de um início turbulento nesta nova moradia em Belo Horizonte, o Reinado, fundado pelo Capitão Alcides e sua esposa, a Rainha Conga Rosa de Lima da Cruz e familiares, ainda na cidade de Queluz de Minas (na região de Lafaiete), seguiu caminhada sem grandes embates com a polícia. À época, o Concórdia possuía apenas uma igreja, a primeira congregação adventista da capital mineira. A Igreja de Nossa Senhora das Graças ainda não havia sido construída. A comunidade que ali se formava agregava-se em torno de um campo iluminado por Nossa Senhora do Rosário, a santa que escolheu estar ao lado dos pretos.
Não se sabe ao certo onde foi a primeira morada de Seu Alcides e Dona Rosa quando chegaram de Queluz, mas acabaram por firmar raiz naquele que é um dos bairros mais antigos da cidade, povoado por operários retirados das regiões centrais por uma política higienista. Na topografia irregular do Concórdia, acabaram por firmar raiz num terreno da rua Tamboril, onde, numa convivência orgânica com o território, batucavam para o sambar e o rezar, compondo um modo de viver regido por vínculos e saberes ancestrais..
Ali cada um cuidava da sua fé enquanto partilhavam uma vizinhança. Mas, se antes minimizados pela história de constituição do bairro e por essas relações de comunidade, os episódios de intolerância à expressão das religiosidades de matriz africana tornaram-se mais frequentes com o processo de verticalização. Os novos prédios trouxeram novos vizinhos, e para enfrentar todo o mal, valia-se da ciência do Congado, dos cantos de louvação e proteção. Mas, para avisar aos desavisados, uma faixa estendia-se com o nome dela: “Guarda São Jorge do Reino de Nossa Senhora do Rosário – Fundada em 13 de maio de 1938”.
“Quem estava ali era a mãe”
Um pé de mangueira sombreia a pequena Capela, erguida onde Nossa Senhora de Aparecida orientou num sonho. À época, a Irmandade havia ganhado uma doação, o suficiente para somente erguer as paredes da Capela, e também contaram com a ajuda da Igreja de Nossa Senhora das Graças e da Igreja Batista da Concórdia durante a construção. Nessa toada, o sonho, a orientação da Virgem Mãe Aparecida ia, aos poucos, se materializando. Tempos depois, colocaram a laje, e a Capela ganhou um altar onde se reza aos pés de Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora da Saúde e Nossa Senhora de Guadalupe. Ali também está a guarida de São Jorge Guerreiro, São Judas, São Sebastião, Santo Antônio, São Benedito, Senhor Bom Jesus, Sagrado Coração de Jesus e Sagrado Coração de Maria, São Cosme Damião. A proteção de Sete Flecha, Cobra Coral, São Pedro, São Lázaro e São Miguel Arcanjo. Entre as imagens, estão ainda espadas, coroas e bastões. Foi nesse território sagrado que Kelly, a irmã mais velha, e Kelma, a mais nova, também chamada de Tuca, firmaram compromisso para seguir com a tradição do Rosário.
Ali nos receberam num dia de se encantar, num espaço onde sentiam a guiança e a proteção para compartilhar com o desconhecido aquilo que é fundante, que mora numa profundeza vinda de muito antes, que habita a intimidade que se refere ao sobre e ao como viver. Kelly de vestido branco atravessado por sua faixa azul de Rainha Conga. Kelma, Capitã Regente e Rainha da Alvorada, com um rosário entrecruzado no peito e um cocar de penas coloridas na cabeça. Assim pareciam compor o altar ao fundo.
No Reinado, o tratamento se dá entre capitã e rainha, cargos que ocupam, mas, sentadas lado a lado durante algumas horas de uma prosa interessada por quem queria ouvir e por quem queria narrar-se, transparecia a intimidade de irmãs que se cortam, discordam, cutucam fragilidades e se reconhecem nas virtudes e esforços de uma dedicação grandiosa para deixar de pé um saber que as mantêm erguidas e sustenta o viver.
Na história da Guarda São Jorge, as reinadeiras são maioria e vivem irmanadas. Sustentam os pilares da casa, batendo caixa e cimento do chão. Na solidão e nos momentos em que o masculino é ausência, reconstroem a Guarda dia a dia enquanto erguem a própria existência. No campo sagrado, aprenderam a liderar e o fazem por responsabilidade e devoção, com a destreza e os desafios cotidianos do encargo congadeiro e da lida da vida, nesses espaços que se imbricam e se confudem. Para atravessar as encruzas, as irmãs se apoiam, fortificadas pelo o que as deixaram as que vieram antes. Tomam outras mulheres como referência, são amparo para as parentes de Congado, constróem uma rede de reciprocidade tecida a fios de afeto e fé.
“Estamos aprendendo a estar à frente. Aprendi muitas coisas vendo minha mãe sendo pai. Meus primos também tinham mãe dentro de casa porque os tios já tinham morrido. Ou se tinham pai em casa, eles saíam para trabalhar, e quem a gente via era a mãe. Tudo o que acontecia e quem estava ali era a mãe.” – Kelma
A avó Dona Rosa, a mãe Dona Wilma, a Avó Ephigênia, a Dona Teresa, a Dona Bela, a Dona Cecília, a Dona Cassimira, a Dona Cecília de Sete Lagoas, a Dona Sinhá. A Maria, a Zilda, a Graça, a Tia Neusa. Kelma e Kelly se ligam a uma linhagem feminina de sangue e de outros encontros, com mulheres que habitam ou habitaram a vivência diária, em que se aprende nos detalhes um jeito de ser e de viver em irmandade.
As Rainhas Congas
1. Maria dos Anjos
2. Rosa
3. Ephigênia
4. Teresa
5. Wilma
6. Kelly
A coroa que Kelly carrega, antiga e de tradição, está no sexto reinado e, até chegar a ela, coroou a bisavó, a avó Rosa, a Vó Ephigênia, a Dona Teresa, a Mãe Wilma. “A Rainha Conga representa Virgem Maria na Terra. E eu não me sinto digna dessa coroa, ao mesmo tempo que é uma honra enorme. Quando coloco a coroa, lembro que já a vi na cabeça da minha avó. Eu, a princesa dela, agora uso a coroa dela” – Kelly.
A hesitação diz do respeito pela sabedoria das rainhas anteriores, como expressa ao falar da avó que faleceu quando ela tinha apenas oito anos, mas que deixou nos ouvidos da neta uma voz trêmula e grave que rezava “A Nós Descei”. É de 1979 a foto que registra a última festa de Dona Rosa. “Ela rodeada dos marinheiros e da meninada, a expressão da humildade. Sempre escondida atrás de todo mundo, aparecia quando tinha que aparecer.” – Kelly.
Em 2014, Kelly aceitou a coroa por compromisso e deu as mãos a Pai Ricardo, Rei Congo Ricardo de Moura que já reinava por dois anos sem a companhia de uma rainha. “Com ele, eu não me sinto sozinha.” – Kelly.
Casada, Kelly é mais de um filho que também leva o nome de Ricardo. Além de rainha, é também presidenta da guarda. O acúmulo de funções é uma constante, uma necessidade para os tempos em que o círculo da Irmandade se forma com poucos membros. Foi pra preencher um espaço vazio que Kelma, aos oito anos, solicitou para si o cargo de Rainha da Alvorada, quando a coroa foi entregue sem que houvesse quem suceder. A Rainha da Alvorada recebe a guarda da casa, que percorre as ruas no alvorecer, anunciando que o domingo é dia de festa. Ela recebe a bandeira da guia e oferta um café, dentre outras funções do seu cargo. Ainda menina, Kelma pedia ajuda na vizinhança. Hoje, ela serve o café aos sábados, no encerramento da festa, para que o preparo dos alimentos seja feito com tempo e por suas mãos que testam receitas novas de pães e bolos. “E faço o café pra todo mundo, meus vizinhos, outros congados. Eles já sabem que sábado tem o café da Sá Rainha.” – Kelma .
A Capitania – Masculino fundador e feminino mantenedor em harmonia
1. Alcides
2. Maurilio Damião e Wilson
3. Wilma e Coronel
4. Kelma e Kassius
Kelma já era Capitã da Guarda, mas com o falecimento da mãe, ainda se tornou Capitã Regente. Sem Dona Wilma por perto, ela foi posta à prova por gente que duvidava da sua capacidade em exercer a capitania.
“Mas ela sabe capitanear. Quando está capitaneando, sinto segurança, não só por cantar a coisa certa, mas por saber conduzir o processo. A pessoa pode estar com a espada na mão, mas exerce a função sem estar instituído espiritualmente. Com guarda de poucos componentes, temos que agradecer pela capitã que temos, que toma conta de tudo. Ela não tem outra opção a não ser guerrear.” – Kelly
Kelma tem três filhos – Késsia, Kássius, Klayton – e muitos agregados. Caseira, reconhece que deixou de fazer coisas que gosta, como ir a um samba, por não se permitir a fruição e acumular tarefas do Reinado após a despedida da mãe. A coluna chegou a se deslocar tamanhas as atividades. “Já teve época que arrumei pra sair e meu filho perguntou se estava indo pro Congado ou pra macumba, porque eram os únicos lugares que eu ia”.
À pergunta da irmã – “Quem é Kelma?” – ela prefere dizer que é interrogação e reticências. “Hoje estou fazendo mudanças na minha vida e pretendendo fazer coisas que eu não faço. Dentro das dificuldades da vida, estou tentando me colocar sem me maltratar.”
“Como nosso passado era a senzala, o único caminho da riqueza era o estudo”
Rainha Kelly
Com todos os desafios que se impunham, Kelly e Kelma não abriram mão dos estudos formais, tão incentivados pela mãe. A Capitã Kelma se formou em Serviço Social e trabalha na Zoonose da Prefeitura de Belo Horizonte. A Rainha Kelly prestou vestibulares e concursos, com dinheiro que a mãe tomava emprestado para pagar as inscrições. Em 1993, vieram os resultados, todos de uma vez. Passou em Psicologia na PUC e Educação Física na UFMG, o curso que queria. Foi aprovada na Polícia Civil e logo mais recebeu a notícia da aprovação na Copasa. “Quando chegou o telegrama, eu e mãe cantamos juntas. ‘Tarda, mas não falha. A quem Deus prometeu nunca faltou’”. Um samba cantado por Zeca Pagodinho.
Festejavam a possibilidade de concretizar o que sonhavam: fazer uma casa, uma cozinha para o Reinado, ter uma condição melhor para melhorar a dos seus. “Já passei muita necessidade, não foi de fome, mas foi de privação”. Em 2016, Kelly se graduou também em Direito, sempre perseverando frente às dificuldades, mas agora exibe de cor o número da sua carteira. “Eu tenho a coisa da perseverança. E é no Congado que tenho força. É no Congado que a gente imanta, na devoção à Nossa Senhora de São Jorge.” – Kelly
“Aprendemos as coisas só com ela”
A coroa de Capitã de Kelma veio da mãe, Dona Wilma, a primeira mulher a carregar a espada em Belo Horizonte. Comumente destinado aos homens, o cargo não estava sendo bem guardado pelos tios. Sem ter outra possibilidade, Dona Rosa, a avó de Kelly e Kelma, aceitou a oferta de Dona Wilma para ajudá-la com a guarda e a consentiu a responsabilidade da espada em meados da década de 60. A Federação dos Congados de Minas Gerais, entidade representativa, tentou impedir, mas Dona Wilma não se curvou.
Quando em 1979, Dona Rosa veio a falecer, ou melhor, se encantou como diria Guimarães Rosa, muitos membros saíram da guarda, e foi Dona Wilma quem ficou para dar continuidade. Viveu o abandono mais uma vez, quando em 1998, os que restaram saíram para integrar a Guarda de Moçambique Treze de Maio. Ninguém acreditava que sua guarda voltaria para as ruas, mas no ano seguinte, fez formação e saiu com cinco membros, suas duas filhas Kelma e Kelly e os netos que chegaram para dar suporte à família. Dona Wilma faleceu em 2010. “Mas o que ela nos ensinou segue vivo.” – Kelma.
Carinhosamente chamada de Vu, ela atravessa as memórias de tantas outras reinadeiras. Nem é preciso perguntar sobre Dona Wilma, as mulheres a trazem à conversa, pronunciam seu nome com grande respeito e admiração, em reconhecimento aos passos firmes que tanto contribuíram para torná-la exemplo de uma história de resistência. “As pessoas viram minha mãe sozinha e seguindo adiante. Ninguém passou pelo que ela passou. Uma mulher à frente, na década de 1960, desafiava o status quo.” – Kelly
Outra Rainhas
Irmandade é uma forma de viver. E este modo de se organizar, de se constituir, está na história da Guarda de São Jorge do Reino de Nossa Senhora do Rosário que, para seguir, precisou contar com os laços de solidariedade das parentes de outros reinos negros. Com o falecimento de Dona Rosa, Vó Ephigênia volta para a irmandade de onde havia saído nos anos 1950 e assume o cargo de Rainha Conga, acumulando a coroa que mantinha de Rainha Perpétua na Guarda de São Sebastião. Ela já havia sido coroada Rainha da Cruz por Dona Rosa, um feito histórico porque era um cargo que não existia e havia sido criado para ela. No dia da sua coroação, a comunidade alvoroçada acompanhou a Guarda que a buscou em casa, à rua Salinas, em cortejo. Todos queriam ver a rainha branca, outro ineditismo. “Vó Nicinha contava sussurrando. ‘Todo mundo foi atrás, era um alvoroço’”, conta Kelly, lembrando da avó materna do Rei da Espada, Daniel. “Vó Nicinha, matriarca singela, sábia e humilde em seus conhecimentos da vida. Uma das moradoras mais antigas do bairro”.
Depois de Vó Ephigênia, Dona Teresa Gonçalves de Oliveira recebeu a coroa. Sem apoio da Federação, diante de inúmeras dificuldades, Dona Teresa contou com o círculo das reinadeiras. Enquanto Dona Wilma e suas filhas a visitavam e a ajudavam a erguer sua festa, ela levava sua Guarda de Moçambique do Divino Espírito Santo – a primeira guarda do Divino Espírito Santo de Belo Horizonte – para os festejos na São Jorge e ainda reinava como Rainha Conga.
Ó brejeiro, ó patrão, alerta alerta, alerta estamos
Pra reinar com o Divino tem que ter zelo. A festa é momento de firmar o compromisso com o Rosário de Maria. Por isso, as guias do Candomblé, onde Kelly e Kelma são iniciadas, ficam em casa. “Assim como o terço não tem valor para o rito do Candomblé, a guia do Orixá não tem para o Reinado. Nascemos no Rosário e fomos criadas tomando passe em terreiro de Umbanda, indo em festa de Cosme Damião. Mas a gente sabe separar as coisas, por mais que elas se cruzem. No Rosário de Maria, tenho a vida, a morte e a ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, meu Salvador, Rei da Glória. Se eu não tiver devoção nisso e tudo aquilo que traz minha ancestralidade de matriz africana conjugada com cristianismo, não preciso estar ali.” – Kelly
Numa relação entre o mundo dos visíveis e invisíveis, da matéria e do sutil, numa Festa do Rosário acontece muita coisa, e isso exige preparação. Resguardo, jejum, oração. “Quem está na chuva é pra se ‘queimar’. Você vai para uma festa de devoção, mas não sabe o que vem do lado de lá. Aqui em casa não existe nada cantado pra florear. Tudo tem um sentido. Na maioria das vezes é pra nos proteger, mas no estilo escorpião”. – Kelly
Com a guarda formada, a Capitã Kelma protege o corpo e pede licença pra sair. Vai para a rua carregando sua bandeira, seu guia que a leva pra onde deve ir. Ao que vier, a bandeira tem que proteger. Se não protegeu, o canto tem que combater. Os marinheiros têm que estar alertas pra responder ao que está sendo falado. E se o que vier de ruim passar, ainda resta o trono da rainha que tem que saber rezar. “Congado tem ciência, tem sabedoria.” – Kelma
“Ficar sem tocar no terreiro dói”
Num país constituído no sangue da escravidão, nas injustiças e no enviesamento das narrativas hegemônicas, Kelly firma seu posicionamento de fé e de política na certeza da aparição de Nossa Senhora do Rosário para os negros.
“Eu nunca ouvi esse termo, mito fundador. Deve ser coisa das Ciências Sociais. Chama-se de lenda, mas quem faz o sagrado é o povo, não é a igreja instituída. Eu teria que olhar no dicionário, mas me parece que tratar como lenda é como tratar de algo que não existe, uma história contada para alimentar o imaginário popular. Retira a legitimidade de algo que é fato, aconteceu, é legítimo. Compreender o Congado como folclore não nos serve politicamente. É mais simples, considerando-se a sua participação no processo de busca, chegar na cachoeira e depositar uma oferta. Mas no Rosário, tem que colocar o joelho na terra e fazer sua parte porque você que toma conta e presta conta. E tem que ter a consciência de que não precisa de bíblia. Nós do Rosário exercemos nosso cristianismo sem deixar de sermos negros, utilizando nosso tambor”.
A aparição de Nossa Senhora do Rosário, narrada em diversas versões, é o que liberta os negros para a festa. Quando um Congado bate é pra celebrar a chegada dela, que funda a estrutura organizacional do Reinado. Cravada nos passos dos antepassados, a tradição se perpetua na oralidade e na vivência, nos cuidados com os ritos em seus detalhes, uma tarefa árdua que enfrenta as dificuldades do tempo que se transforma. É quando a ancestralidade se torna um processo divino de continuidade. “O que tenho hoje é porque eles começaram.” – Kelly
Ela lembra como Dona Wilma, sua mãe, gostava de criar tradições. Costumava pendurar frutas no pé de manga para ofertar aos caboclos e depois distribuía a toda a gente. No encerramento da festa, no sábado, saía com o Congado batendo de porta em porta entregando rosas. Também servia a sopa dos Zarur, um costume que tomou dos kardecistas como hábito de ofertar um alimento. E ainda servia um vinho feito com a magias das próprias mãos. “Quando minha mãe faleceu, uma das coisas que passou pela minha cabeça é que ficaríamos sem o vinho. Na primeira festa sem ela, chamei O Rei Congo, já chorando, falando que essa tradição tinha acabado.” – Kelly
O Rei Congo então contou que na festa do ano anterior, Dona Wilma, já resguardando a continuidade da alquimia criada por sua mãe, ensinou ao neto Kássius, consagrado capitão em 2019, os segredos da bebida. É assim também que as irmãs vigiam para que a tradição seja mantida, na medida do possível, como aprenderam com os mais velhos, compreendendo e lidando com as mudanças do tempo, sem perder o rigor. A matriarca dizia que Congado não é obrigação. Fica quem quer estar. Mas pra tomar gosto, é bom que seja de pequeno. Na segunda-feira de festa, é dia das crianças. São elas que pegam a espada e puxam os cantos. “Foi um meio de agregar responsabilidades. Minha mãe me ensinou que no Congado você conversa com o olhar. Não precisa de brigar.” – Kelma
A manutenção faz suar. Exige esforços que tombam a coluna, fazem doer os pés. Nem sempre é possível seguir como se deseja. Nos tempos originários da Guarda de São Jorge, o Reinado era constituído por um terno de Congo e outro de Moçambique. Mas com a saída de alguns componentes, e a fundação de outros Moçambiques na cidade e bairros vizinhos, só foi possível à Vó Rosa dar continuidade ao Congo. Recentemente, a guarda tem sido orientada a aprofundar no ritual do Moçambique. E assim buscam fazer, valendo-se das redes de irmandade. Tomaram emprestado o Capitão Regente da guarda de Vó Ephigênia e reproduziram as fardas originais do Moçambique da Guarda de São Jorge, como viram numa foto da década de 30, uma relíquia. Em 2019, na segunda-feira de festa, a toada bateu diferente.
“Os nossos antepassados sabem que estamos numa manutenção de resistência e devoção que é o que nos sustenta. Se amanhã tiver que voltar efetivamente com o Moçambique, eles vão trazer devotos pra isso, mas hoje não temos condições porque não temos Capitão. Andar pra trás não tem jeito, parar a gente não consegue. É pedir força e operário para a messe porque a messe precisa de operário. Eu não quero que pare de tocar aqui. Ao final da quaresma, em 2017, a Tuca abriu os trabalhos. Quando ouvi, o trem dentro de mim tocou. Fiquei dançando lá dentro, tipo valsa. Que gostoso ouvir o tambor tocar aqui dentro no lote, independentemente de formar pra ir tocar na casa dos outros. Lembro de um dia, quando a guarda não saía há tempos, na década de 1980, em que a mãe pegou duas caixas e foi tocar. Ela chamava e respondia. Tocava uma coisa triste que não me lembro. Sabe aquela saudade de ouvir? Então, eu não quero sentir saudade de ouvir. Ficar sem tocar no terreiro dói. Mas quando tiver uma pessoa, ela pega duas caixas e toca porque estamos amparados pelo manto de Nossa Senhora, nosso Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador e Rei da Glória, que nos ampara e dá proteção pra seguir pra frente” – Kelly
Ô mamãe,
não deixa seu filho chorar
Não deixa a coroa cair,
Não deixa esta festa acabar
(Canto do Congo